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terça-feira, 4 de março de 2014

Carlos e Jéssica: O dia em que as engrenagens pararam

Autor: I. J. Santim
Acessem pela imagem e leiam meu primeiro romance

Capa: da minha querida colega e amiga Priscila Rigoni

 
Cinco da manhã. Lá fora está escuro. Faz frio. Há trovões. Relâmpagos. Raios. Dentro, um relógio despertador tocando. Carlos, mal humorado, acorda e dá um tapa violento na droga do despertador como se o aparelho fosse culpado por suas escolhas, consequências e contextos aleatórios. Ele fechou novamente os olhos, desejando voltar a dormir por mais quinze minutos, os quais se tornariam trinta, depois uma hora, fazendo-o atrasar-se ao seu trabalho e discutir com o almofadinha do chefe do setor, porém isso não se realizou. Jéssica adentrou apressadamente no quarto. Ela já vestia o uniforme da empresa, a qual ambos trabalhavam e sacrificavam-se, inclusive nos finais de semana.
  • Amor, você irá se atrasar.
  • Me deixa dormir mais um pouco.
  • Não!
Jéssica sorriu maliciosamente e puxou o lençol da cama.
  • Não, Jé! Para! Deixa de ser chata!
  • Carlos, você sabe que ao chegar atrasado, terá de discutir com os guardas da portaria para poder entrar e o almofadinha do Diego que não fecha mais contigo há uns três meses.
  • Você está certa querida. - Respondeu sonolento Carlos.
  • O café está na mesa e eu terminarei de arrumar as crianças. Tadinhas, acordá-las a esta hora é tortura!
  • Isso se chama indústria...
  • E nós somos seus órgãos.
Carlos e Jéssica normalmente mantinham longas conversas ora de estilo marxista, ora apenas hegeliano acerca do real sentido da indústria e de toda a sua produção, chegando à triste conclusão de que muito do que se produz é supérfluo, sem serventia e capaz de apenas ajudar às pessoas a viver fantasias e a sentir novas necessidades. Todavia, não é o que o povo quer? Não se pode generalizar.
Durante o trajeto de carro para a empresa, passando pela escola de educação infantil, essa discussão prosseguiu. Carlos achava tudo inútil, babaquice, coisa de intelectual, ou pior, de gente de escritório, cujo suor do trabalho sempre desconheceu, mas agradava à esposa, uma garota jovem, meiga, a qual recém tinha conseguido um diploma em história, porém relutava a ser professora e continuava como chefe de setor da merda de uma linha de produção!
Chegando à empresa, Jéssica e Carlos estavam mais de vinte minutos atrasados. Os portões de entrada tinham sido fechados haviam cerca de quinze minutos, dificultando o acesso ao interior do complexo. O casal, por isso, teria de discutir com os guardas ou esperar a manhã passar e entrar depois do intervalo, conforme ordenava o regimento interno. A empresa, renomada na fabricação de calçados femininos, demonstrava-se inflexível e, por isso, mantinha contratada uma empresa de segurança fiel religiosamente às leis, regras, normas, instituições e o que mais convier para organizar, disciplinalizar e colocar nas queridas estruturas os fiéis “colaboradores.”
Jéssica antecipou-se ao desembarcar do carro para tratar com os guardas, pois ela temia que irritado, devido ao trânsito caótico da cidade seu marido irracional1 arranjasse confusão e fosse despedido. Isso já tinha acontecido uma vez e o gerente prometeu despedi-lo na próxima. Um homem gordo, calvo, sisudo e de uniforme cinza com um pequeno escudo inscrito “segurança” na altura do peitoral direito surgiu na guarita.
  • Bom dia! Meu marido e eu estamos atrasados por causa do trânsito, você poderia abrir podermos trabalhar?
  • Sinto muito, mas isto não é possível. Deveriam ter saido mais cedo de casa.
  • Mas, nós saimos. - Murmurou Jéssica, lembrando-se que Carlos insistiu para ficar mais alguns minutos na cama. Sentiu naquele momento raiva dele, mas repensou a situação e concluiu que ele não era culpado. Tinham saido na mesma hora várias vezes anteriormente e nunca se atrasaram, porém nos dias passados não houveram temporais alagando a cidade, enquanto dirigiam para o trabalho. Nesse instante, o céu estava límpido, o concreto da calçada e o asfalto da rua começaram a refletir a luz solar, cuja intensidade fazia brilhar milhões de pontinhos da superfície.
Jéssica procurou manter-se calma. Era a primeira vez que lhe acontecia esse tipo de situação. Enquanto isso, Carlos esperava impaciente no carro o retorno dela. Suas mãos sobre o veículo tremiam. Ela redarguiu:
  • Olha, nós saimos cedo de casa, mas o temporal piorou as condições de trânsito.
  • Eu entendo, mas...
  • Você não é meu chefe e não tem fundamento para dizer que devia ter saido mais cedo de casa!
Jéssica resolveu descontar a sua raiva contra um guarda que praticamente desempenhava eficientemente o seu trabalho e não toleraria nenhuma exceção.
A cena foi cômica. Ele subitamente tremeu, rasgou uma folha de sua caderneta de anotações, derrubou sua caneta ao chão e, quando foi tirar o telefone do gancho, bateu-o na lateral do suporte. Nesse momento, Carlos havia deixado o automóvel e se aproximado da guarita.
  • Querida, acalme-se, não vamos fazer escândalo.
Jéssica estava vermelha.
  • Claro.
  • Eu vou ligar para o gerente.
  • Não precisa, estamos indo embora.
Indo abraçados para o carro, Carlos murmurou:
- E eu que discutiria com os guardas.
- O que vamos fazer?
- Vamos para casa.
- Mas?
- Confie em mim, é o que eles querem.
Jéssica encostou sua cabeça no ombro de Carlos, enquanto engatavam os cintos. Seus lisos cabelos loiros roçaram sobre o ombro dele. Ela estava chateada, temia que ambos perdessem o emprego e, todavia, sentia que ele havia evitado uma confusão maior. Claro! Se o gerente aparecesse... ele é fanático por ordem, disciplina e inflexibilidade. Considerava a empresa como “a grande família” e sempre cuidava para que sua estrutura não falhasse. Só zelava pelo bem dos funcionários, essa chamada família, quando a lei mandava, porém exigia que essas medidas refletissem em produção, qualidade do produto finalizado e não no bem estar individual. Esses pensamentos ocorreram na mente dela até chegar ao apartamento do subúrbio da cidade, num prédio ambíguo a uma favela, cujas cenas de crianças andando armaadas pelas ruas, transportando crack ou maconha até os merdas que desejavam comprar para cheirar eram visíveis da varanda.
Da garagem ao quinto andar, havia silêncio. Saindo do elevador, Jéssica e Carlos depararam-se com o corredor vazio. Sua iluminação só se ativou com a presença deles. Dentro do apartamento, ela jogou sua bolsa no sofá e ele se dirigiu à cozinha.
- Eu vou ver o que faremos para o almoço.
- Claro.
Jéssica sentou-se ao sofá para continuar a ler um livro a partir de uma página marcada.
- Certamente, seu lugar não é lá conosco.
Jé sorriu. Ela compreendia que Carlos orgulhava-se de sua mulher. O diploma havia sido conquistado com muito esforço e sacrifício, mas a promoção também, por isso a relutância de deixar a empresa. Contudo, dentro disso nutria um desejo maior: ajudar a conseguir um ambiente de bem estar no trabalho aos seus subordinados que executavam todas as tarefas especializadas sobre sua orientação. Mas como? Carlos era membro do Sindicato, o qual, infelizmente, permanecia mancumunado com a empresa e satisfazia os desejos dos gestores dela. Típico de qualquer sindicato.
- Hum, acha que eles irão ligar? - Perguntou Jéssica quando viu Carlos retornando da cozinha com duas xícaras de café.
- O que você acha?
- Pensei que se preocupassem conosco. Ah, obrigada.
- Não percebeu? Nem você é significante.
- O Sindicato não pode fazer nada?
- Não.
- O café está excelente.
- Obrigado.
- Eu ficarei no quarto um pouco.
- Quem poderá estar no Face a esta hora?
- Sempre tem alguém.
Sorridente e com a xícara de café na mão, Jé ergueu-se, andou para o quarto, enquanto carlos ficou olhando-a caminhar e, consequentemente, sentindo uma atração imensa toda vez que fitava a bunda dela, porém, de resposta, ele recebeu um olhar reprovador. Ela riu, entrou, viu a cama desarrumada, uma cueca embaixo, roupas amontoadas sobre uma poltrona deixadas para passar a ferro, caminhou até a escrivaninha, sentou-se, ligou o computador, esperou cinco longos minutos ao windows inicializar-se e mais três a conexão de Internet terminar de se estabelecer. Enquanto esperava, ela preferiu acessar o Face pelo smartphone, viu os recados, os posts, algumas fotos da última bebedeira com os colegas de sua casta na empresa, de “quem pegou quem” e desconectou-se. A Área de Trabalho do Windows em seu computador pessoal e a conexão com a Internet estavam preparadas para uso. Então, Jéssica pos sua mão sobre o mouse, conduziu o cursor até o Google Chrone, clicou duas vezes, a janela do navegador abriu carregando a página do Google, ela localizou sua lista de “favoritos da web”, clicou sobre o endereço do Facebook e depois de a página carregar fez login.
Jé sentiu satisfação ao contemplar sua página e ver que ela estava lá com seu layout branco, ícones de aplicativos, jogos, grupos etc à esquerda e sugestões de amizade e propagandas à direita, ordenados de forma vertical. Na aba superior, à esquerda sobre a faixa azul, os ícones informando haver pedidos de adição de novos contatos, notificações gerais e recados iluminavam-se com sinais numéricos avermelhados. Cinco, noventa e seis e dezesseis. A maior parte de tudo isso não passava de inutilidades: spams, vírus, propagandas postadas por contatos correntes e convites para jogos on-line. Olhar para esse panótipo irritava-a, aumentando o seu desejo de abandonar a rede social, composta na maioria de gente sem bom senso, porém não fazia por causa do vício inebriante e da falta de condições neuroniais para implementar decisões.
Por cinco minutos, Jéssica navegou imersa na inutilidade das postagens de seus novecentos e oitenta e seis contatos, excetuando as fotos das amigas de vestidos justos, brilhantes, shorts curtos e barriga de fora, mostrando piercing no umbigo e copos emborcados de cerveja na balada noturna, as quais lhes fazia surgir o sentimento de nostalgia, pois ela havia vivenciado aqueles aspectos antes de namorar, ir morar com Carlos, concluir a faculdade e ter dois filhos. De repente, observando a lista de notificações, encontrou um convite para um grupo de discussão e um evento chamados: o dia de parar as fábricas do mundo. Aceitou risonha a ambos os convites, sem refletir muito, pois ao navegar na web isso comumente não se faz, segue-se apenas gestos, tendências,modismos, sensações etc.2 Depois de aceitar aos convites, Jéssica conheceu o perfil do grupo, a proposta de discussão e do evento. Imersa no ambiente virtual, ela não se lembrou de controlar o tempo de uso do computdor. Era meio dia. O cheiro de comida e os gritos de crianças da cozinha despertaram-na. Nesse instante, Carlos entrou:
- Querida vem almoçar. Eu pedi à Mari do andar superior para pegar as crianças na escola e fiz algo especial pra gente. Vem.
- Nossa, deve ser algo delicioso com esse cheiro!
- Vem.
-Tah, depois quero te mostrar algo e quem sabe planejar uma greve sem depender da assembleia sindical submissa.
- Estou curioso, mas por que agora?
- Cansei dos abusos, do autoritarismo, de regras muito controladoras e de ver os operários quase se matando de tanto trabalhar em nome da tendência da próxima estação sem o merecido retorno. Quero fazer algo que acabe com isso.
- O que você anda lendo ultimamente? O Manifesto Comunista de novo!
- Você deveria lê-lo algum dia. Nossa! Que mesa linda!
Carlos puxou a cadeira da ponta. Jéssica acomodou-se depois de beijar seu filho de cinco e sua filha de três anos, a qual estava sentada em uma cadeira apropriada para as refeições infantis. Os olhos dela brilhavam. Ela sorria de encanto e alegria. Tinha ficado consciente de que o incidente da manhã deu-lhes a oportunidade de reunir a família, algo raro, de brincar com os filhos, falar com eles, dar carinho e namorar.
O almoço foi divertido na companhia das crianças para Jéssica e Carlos. A inteligência delas surpreendia-os cada vez mais. Elas demonstravam muita curiosidade. Guilherme, o filho mais velho, perguntoou por que a mamãe e o papai não foram trabalhar naquela manhã, e, considerando esse fato, se não poderia faltar a escola também, já que eles descumpriam o dever de trabalhar, então ele poderia fazer o mesmo quanto ao estudo. Foi difícil convencê-lo, mas graças a isso ela o questionou:
- O que você aprendeu ontem na escola?
- Dinossauros!
- Hum, o que mais?
- Eles eram... uns lagartos grandes, andavam por... toda terra, mas morreram. - Explicou com dificuldades Guilherme.
- Por quê?
- Um meteoro matou eles!
- Nossa, quanta você aprendeu! -Disse orgulhosa Jéssica.
- Vamos passear no parque depois?
- Vamos! - Respondeu a filha Eduarda, erguendo os braços para que a mãe pegasse-a no colo.
O ar, embora poluído, o cheiro das flores, o vento balançando as árvores, os bebês nos carrinhos e as crianças assistidas pelos pais brincando na pracinha, enquanto outras apreciavam os peixes no chafariz e perseguiam os passarinhos tornaram a tarde agradável a uma família jovem, cujo tempo de convivência com os filhos e de ócio era reduzido, por causa das horas extras, das respondabilidades com a casa, dos estudos, das preocupações e do cansaço.
Enquanto balançavam as crianças no balanço da pracinha, Carlos demonstrou certa curiosidade a respeito da possibilidade de começar uma greve independente dos sindicatos. A ideia parecia fantástica demais, utópica para a compreensão dele, um homem que nunca se importou com o estudo e aprendeu durante a vida a importância do que tinha negado.
- Você me falou de uma greve independente do Sindicato.
- Sim. Podemos usar o Face para programá-la. Os funcionários possuem perfis e os que não possuem poderão usar os dos filhos para se informar, problematizar, discutir e implementar as ações. O grupo que contatei, o qual planeja uma greve nacional em parceria com outros no exterior já marcaram uma data.
- Isso é loucura! Tem gente lá que não aceitará, porque se preocupam em não receber para comprar comida aos filhos, pagar aluguel, luz, água, gás e outras contas. Você sabe que o que nos pagam é uma bosta, mas ficamos na fábrica porque é o que sabemos fazer e se pedíssemos as contas o risco de não conseguirmos nada lá fora é grande.
- Querido, eu sei. Isso é triste. As fábricas deveriam ser apenas locais de transição. Poxa! Nos últimos quatrocentos anos conseguimos tantos conhecimentos e eles, em geral, só serviram para estabelecer novas maneiras de dominação e aumentar a população submissa. Os espertos em economia, finanças etc tornaram-se seus Senhores. Eles consideram a maioria incompetentes, mas ambiguamente precisam dela como operários. Os americanos chamam estes indivíduos de perdedores. É o que apregoa o velho e o neo-liberalismo.
- E há aqueles de nós que se vende a essa gente.
- Eu fui uma, acho!
- E eu nunca pensei que uma mulher linda, inteligente, sempre vestindo roupas da moda e ganhando fosse se interessar por um...
- Grosseirão como você?! Bem, a Biologia explica que o seu cheiro me atraiu. Chama-se seleção natural!
- Legal, Deus me abeçoou!
- Para, nós perdemos o foco da conversa! - Exclamou risonha Jéssica, pois ela escutou uma resposta dada de forma cômica.
Carlos observou a hora em seu relógio de pulso:
- É, está tarde, por isso vamos levar as crianças para casa e tentar executar essa ideia fantástica.
Ele admirou a proposta, mas somente por causa da chance de dar uma grande dor de cabeça á gerência da empresa. Planejar a greve pela Internet através do Face pareceu uma ideia inteligente, pois a coordenação e a execução poderiam ser realizadas por todos. Ademais, como a rede não é hirerárquica, mas rizomática e descentralizada o líder mais atuante ou que causou o estopim do movimento dificilmente seria identificado para que o Estado pudesse caçá-lo, principalmente o Estado brasileiro, cujas merdas das autoridades, mantendo um padrão autoritário vigente desde 1822, mandam seus subordinados às ruas, onde eles, influenciados pela cultura de impor a lei e a ordem de forma autoritária, batem nos manifestantes.3
Jéssica apresentou a ele o grupo que conheceu no Face. Ela argumentou a favor da proposta dizendo que os operários encontravam-se desanimados, entendiados e cansados.
- Uma greve os deixará mais tensos.
- A proposta do grupo é fantasiosa, mas a maioria de suas tem aplicabilidade.
- Voltar a produzir para si mesmo e, assim, não passar fome?
- Isso não é realizável, mas convencer quem controla a economia sim, pois nós controlamos a produção.
- Sim e, por isso, parando a produção mundial a economia para. Mas, e se pararmos e nos despedir.
- Dificilmente identificarão o líder pela Internet e se despedirem os novecentos e noventa operários não poderão contratar a quantidade necessária para o outro dia.
- Vou conversar com algumas pessoas e ver se podemos fazer isso sob os olhos do Sindicato. A parada será em 01 de maio.
- Hum, daqui um mês e meio. O Sindicato falou em paralisação nesse dia, mas poucas pessoas aderem.
- Eles aderirão, pois não haverá energia elétrica nesse país. Terá uma interrupção e isso é certo, pois confirmei com pessoas sérias e de confiança. (Substituir ao publicar para:)4
- Então, vamos à luta!
Jéssica havia percebido ter na web a única esperança a fim de lutar contra os opressores capitalistas de forma a atingir a opinião pública e estabelecer um debate.
No outro dia. Cinco da manhã. Carlos acordou antes dela. Ele pareceu animado. Preparou o café, acordou e arrumou as crianças, chamou a mulher e sairam. Chegaram à empresa quinze minutos antes de passar o cartão-ponto.
Haviam duas filas. Todas as pessoas tinham semblantes sonolentos e andavam devagar, talvez contra a vontade, diferente dos horários de almoço e de saída, além, claro, do seleto grupo de quem manda, com indivíduos sempre sorridente se risonhos, pois decerto o dinheiro ganho fazia-lhes muito bem. Dentro da empresa, o gerente e o supervisor exigiram explicações para a ausência do casal, porém elas não os convenceram.
- Vocês deveriam ter entrado depois do intervalo. A proibição de não poder entrar antes é disciplinar e inquestionável, pois estão garantindo nossos bons resultados. - Disse o gerente Pedro.
- Jéssica, sua ausência causou problemas na produtividade e na organização da produção. A meta diária não foi atingida. Você sabe que isso representa um menor rendimento mensal e a Daffiti pegando em nosso pé, porque demoramos para entregar os seus modelos de sapatos. - Disse asperamente o supervisor Adriano.
Pela primeira vez, ela pouco se importou com os sermões, pois foi mais importante passar a tarde com a família. Carlos, dessa vez, conseguiu ignorar os xingamentos e as grosserias de Diego. Como pode um chefe estudado, assim como a Jéssica ser tão autoritário e nojento? Bem, pensou Carlos, o mês passa rápido e o chefinho almofadinha, puxador de saco da gerência, rezaria para o retorno dos funcionários do setor e, até mesmo, dele.
A proposta foi feita no intervalo e por dias o casal explicou as motivações, os detalhes e as estratégias da greve, semelhante a uma resistência pacífica. Alguns se demonstraram contrários, pois receberiam pouco, poderiam perder o emprego e o movimento considerado ilegítimo, ilegal, já que aparentemente não existiria representação sindical. No entanto, o último argumento era infundado. Carlos era membro do Sindicato e o único que demonstrava vontade de agir em nome do proletariado. Seus argumentos conseguiram convencer no decorrer da semana os colegas mais próximos, depois os operários em geral e dois representantes sindicais, os quais informaram que a entidade estava desistindo da paralisação após conversas a portas fechadas com a gerência. Ainda na mesma semana, Jéssica e Carlos entregaram de casa em casa panfletos com instruções sobre o movimento. Eles evitaram fazer isso dentro da empresa, pois temiam a possibilidade de conflitos com a gerência e os camaleões do Sindicato.
Nesses dias, ela parecia uma daquelas universitárias líderes de movimentos estudantis que elaborava cartazes, pintava a cara e ia para as ruas, batendo panelas, gritando e conduzindo uma multidão por alguma necessidade justa, embora nunca houvesse participado de movimentos estudantis, pois o seu foco era estudo, trabalho e, pouco antes da formatura, o Guilherme.
- Acha que todos conseguirão acumular alimentos para uma longa parada?
Carlos ficou temeroso, com dúvidas e Jéssica hesitante para responder, por isso ele disse:
- Vocês intelectuais são tão idealistas que se esquecem das limitações da realidade dos funcionários da produção.
- Querido todos garantiram conseguir.
- Lembra que a gerência fará a gente ir ao limite. Aquela gente acha que quando a comida acabar voltaremos ao trabalho. Isso é bem possível.
- Se não fizermos isso não acabaremos com as regras autoritárias deles e lembre-se que o Sindicato apoia-as. Sacrifícios...
- Sim, meu anjo, eles são necessários.
Os dias, as semanas e o mês passaram. O evento da greve continuava a ser divulgado pelo Face través de um novo perfil de usuário, criado a fim de divulgar o movimento, instruir operários, debater e coordenar as ações. Graças aos filhos, aqueles aderiam ao movimento, informavam-se e debatiam as futuras ações.
Na empresa, quando o setor administrativo descobriu, o gerente e o dono da fábrica, um baixinho gordo, sempre de paletó e gravata, mesmo no verão, bufaram de raiva! Eles chamaram o presidente do sindicato para uma conversa, mas o barrigudo quase nada pode responder, excetuando a informação de que Carlos tentava organizar a greve de maio. Ele foi chamado e como forma de mostrar aos outros operários o que acontece a quem incita à greve: despedido.
- Acha que assim você coloca medo nas pessoas?
- Apareça amanhã para acertar e pegar suas coisas. Estamos com problemas de finanças e, por isso, começamos um programa de demissões. Espero que um dia você volte. - Disse dissimuladamente o gerente e Carlos silenciosamente saiu pensativo:
- Tão conveniente e pode abalar o movimento.
Para Jéssica aquilo foi a gota d'água.
- Não há nenhum programa de demissão. Eles nos informam nas reuniões. Eu saberia de antemão. Canalhas!
- Não podemos fazer nada, apenas cuidar para o nosso plano dar certo.
- Claro, querido.
- Ah, pega as crianças na escola?
- Sim.
Carlos beijou-a despendindo-se e saiu do quintal da fábrica, passou pela área de carga/descarga, onde uma carreta esperava para o carregamento, enquanto outra estava apenas parada, paralelamente com as grades que separam o prédio da rua, entrou na área de entrada/saída, olhou a alguns colegas apreciando o intervalo sentados nos bancos, passou pela guarita, gesticulou um cumprimento aos dois vigias de serviço e atingiu a rua. Ele ergueu a sua cabeça ao céu. Andou cinco minutos. Chuva. Lá, molhado, teve de competir com uma pequena multidão para embarcar no ônibus. Utilizou-se de três e, enxarcado, chegou em casa duas horas e meio depois, cansado e desejando apenas a cama. Dormiu toda a tarde e só acordou quando escutou o barrulho das crianças correndo pela sala e Jéssica tentando acalmá-las.
- Parem com isso! Vocês vão ir já pro banho!
- Jé?
- Oi, como você está? - Perhuntou ela, indo de encontro para abraçá-lo.
- Eu não me lembrava que era tão demorado para chegar em casa de ônibus, quando cheguei adormeci e não peguei as crianças na escola.
- Já tomou banho?
- Não.
- E foi deitar em nossa cama assim?!
- Pensei se poderíamos tomar banho juntos depois.
- Tah, vamos agora e você me ajuda a dar banho nas crianças. - Respondeu risonha Jéssica, empurrando-o para trás e vendo graça na expressão de desgosto de Carlos.
Nesse instante, ela concluiu que Carlos reagia bem à perda do emprego. Ele estava ciente da grande oferta de trabalho existente na cidade e, por isso, logo voltaria a trabalhar em outro lugar. Manualmente, era habilidoso. Portanto, outras fábricas poderiam acolhê-lo. Procuraria um trabalho novo depois de 01 de maio que seria no dia seguinte.
- Lembre-se de amanhã.
- Merda, esqueci!
O feriado veio. O evento da greve conseguiu através do Face mais adeptos do que se esperava, inclusive de operários de outras empresas. Todos demonstravam querer uma mudança e o abandono do modelo empresarial hierárquico, autoritário e velho, o qual garantia a subordinação total deles aos empresários e suas hordas de seguidores.
Havia um sentimento comum, todavia Carlos e Jéssica começaram a duvidar se esse debate, iniciado fazia mais de um mês desencadearia a grande paralisação proposta pela rede social. Teoricamente, sim, mas na prática não daria para saber, pois o evento é aleatório, totalmente dependente de ações individuais imprevisíveis.
- Acho que estou arrependido.
- Pense no lado bom, fomos pioneiros e se amanhã não houver ninguém lá?
- Teremos descoberto uma nova estratégia de greve trabalhista.
- Só por isso já valerá o esforço.
- Tomara.
Carlos fechou os olhos. Jéssica abraçou-se nele e dormiram. Cinco da manhã. O relógio despertou. Apenas ela acordou. Os anjinhos poderiam acordar mais tarde. Carlos levaria-os à escola.
- Estou indo, tenha um bom dia! - Sussurou Jéssica no ouvido de Carlos e depois de um beijo deixou o apartamento, desceu á garagem, embarcou no automóvel e dirigiu à empresa, sem encontrar trânsito intenso pelo caminho. Ela notou haver quase ninguém nas paradas, os ônibus urbanos vazios, poucas pessoas caminhando nas ruas, o silêncio e o ar fresco.
Na empresa, os operários ainda não haviam chegado, nem os chefes da produção, o supervisor e menos ainda o gerente. Jéssica chegou cedo. Os vigias permitiram que entrasse. Dentro, ela esperou. Os chefes de outros setores chegaram, depois Diego e às oito da manhã Pedro. As máquinas, esteiras, prensas e máquinas de corte, foram acionadas, mas nenhum operário apareceu para trabalhar. O gerente ficou perplexo. Chamou a todos a uma reunião informal.
- Pesssoal, eu não compreendo o que está acontecendo. O Sindicato garantiu não haver greve! - Pedro demonstrou perplexidade.
- Passaram a perna na gente! - Disse indignado Diego.
- Acho que vocês precisam estar cientes de um movimento grevista iniciado através da Internet. Ele deve ter abarcado nossos funcionários. Talvez tenhamos de começar a pensar em negociar.
- Absurdo!
- Um absurdo com reivindicações que estão comigo.
- É ilegal.
- Não, é apenas uma nova maneira de mostrar descontentamento.
Jéssica entregou uma folha com as reivindicações, deixou as instruções de como negociar e voltou ao apartamento. Carlos, sorridente, recebeu-a na portaria do prédio. Ela o abraçou fortemente. Estava excitada. A fábrica e outras indústrias pararam. Um prejuízo enorme aos empresários capitalistas que descobriram precisar reconhecer as reivindicações de seus operários, ter argumentos fundamentados e saber ceder quando não devem/podem contrariar.
- O gerente já disse que as punições por atraso serão extintas, mas quanto às outras reivindicações...
- Vamos com calma minha querida.
- Pode conseguir seu emprego de volta.
- Hum, não tenho mais interesse nele.
Eles subiram ao apartamento satisfeitos com a organização do movimento, o qual agora se regularia segundo o interesse da inteligência coletiva formada.

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